A revolução das baterias – Parte III
Como o armazenamento de energia e as mudanças na REN 482 da Aneel poderão afetar o mercado de GD fotovoltaica no Brasil


As duas primeiras partes deste artigo trataram de questões mais técnicas e de aplicações das baterias, especialmente das novas tecnologias de baterias de íons de lítio que já estão dominando os mercados de mobilidade elétrica, eletro-eletrônicos e de aplicações estacionárias associadas com a geração solar fotovoltaica.
Esta última parte traz uma reflexão sobre o papel que estas mesmas baterias poderão desempenhar no contexto das alterações que a Resolução Normativa 482/2012 da Aneel está propondo e que irão afetar sobremaneira a relação do prossumidor solar com a rede de distribuição.
A geração distribuída (GD) fotovoltaica conectada à rede domina o mercado brasileiro, com mais de 60% da capacidade solar instalada no País. A ampla adoção da geração fotovoltaica nos telhados brasileiros levantou preocupações, especialmente expressas pela associação de concessionárias de distribuição (Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica), de que a REN 482/2012 pode originar distorções entre os consumidores que adotam GD fotovoltaica e aqueles que não o fazem.
A Abradee afirma que o modelo atual “é uma espécie de Robin Hood às avessas”, permitindo que um consumidor (mais rico) com GD fotovoltaica no seu telhado zere ou quase zere sua conta de luz, enquanto seu vizinho (mais pobre) que não tem um sistema fotovoltaico de telhado acaba pagando os custos de sua conexão (os chamados custos de fio).
Leia mais: A revolução das baterias - Parte I
Embora esta alegação sofística ignore os benefícios potenciais (e até agora não quantificados) que a GD fotovoltaica nos telhados pode trazer para a rede de distribuição, como adiamento de investimentos, regulação de tensão e frequência e reduções nas perdas de transmissão e distribuição de energia, ela levou a Aneel a abrir uma consulta pública, levando a um segundo processo de revisão da REN 482/2012.
O resultado desta consulta pública foi publicado pela Aneel como um conjunto de recomendações e cinco alternativas destinadas a cobrar, além da tarifa fixa de disponibilidade já existente desde o início da vigência da RN 482/2012, uma pesada sobretaxa para todos os kWh injetados na rede pública. A alternativa número 5 é a recomendada pela Aneel e a mais agressiva, em que cada 1 kWh injetado na rede elétrica resultará em apenas 0,37 kWh para poder ser compensado pelo prossumidor.
A Aneel e a Abradee afirmam que os prossumidores fotovoltaicos atualmente desfrutam de uma bateria gratuita ao acessar a rede de distribuição pública com a compensação líquida ora em vigor, e que há, neste caso, um subsídio oculto que é pago no primeiro momento pela distribuidora e, em última instância, por todos os consumidores na próxima revisão tarifária. A alternativa 5 da Aneel pode ser comparada a uma bateria muito cara e com apenas 37% de eficiência de ida e volta.
Veja sobre: Quanto custa uma bateria solar
Este movimento agressivo, que afetará profundamente a economia da GD fotovoltaica se for aplicado, resultou em uma reação forte e imediata. Existem cerca de 20 mil empresas instaladoras de GD fotovoltaica registradas no País. Uma considerável força de trabalho está entrando no crescente mercado de GD fotovoltaica, com investimentos, capacitação e cursos de qualificação profissional se tornando um aspecto importante desse novo mercado.
O Projeto de Lei 5829/2019, que tem por objetivo instituir o marco legal da mini e microgeração distribuída no Brasil, está tramitando e as expectativas sobre sua aprovação são grandes.
Espiral da Morte
Se a alternativa 5 ou qualquer outra determinação semelhante for eventualmente adotada, os prossumidores de GD fotovoltaica podem passar a instalar sistemas de armazenamento de energia, que também estão diminuindo rapidamente de custo, como mostra a figura a seguir. Isso pode resultar na chamada espiral da morte, na qual mais e mais prossumidores reduzem sua dependência da rede de distribuição ao adotar baterias em quantidades crescentes, fazendo uso e transações energéticas com a rede de distribuição cada vez menores e contribuindo cada vez menos com a manutenção desta rede. Inicialmente, as capacidades dessas baterias serão menores do que o consumo médio diário de eletricidade de uma residência e, num primeiro momento, compensarão a maior parte da eletricidade gerada pelo telhado solar que seria injetada na rede de distribuição.
Mais adiante, à medida que os preços das baterias continuarem caindo, os prossumidores de GD fotovoltaica podem aumentar sua capacidade de armazenamento até se tornarem quase ou totalmente independentes da rede, caminhando para a defecção total da rede. Isso seria catastrófico para os operadores da rede, devido à crescente adoção da GD fotovoltaica que vem acontecendo a curto, médio e longo prazo.
Leia mais: A revolução das baterias – Parte II
A deserção total da rede é muito mais cara para o prossumidor de GD fotovoltaica do que a deserção parcial de carga, especialmente mais para o sul do País, onde ocorrem maiores variações sazonais na disponibilidade de irradiação solar, mas os prossumidores podem ser compelidos a permanecer conectados à rede de distribuição pública, mesmo que apenas para usar a rede no mínimo nível possível, durante uma sequencia de dias de céu encoberto onde a geração fotovoltaica não consegue atender à carga e carregar as baterias. Nesse caso, a espiral da morte do sistema de distribuição se mostrará não apenas uma ameaça hipotética, mas real, próxima e presente.
Nesse contexto, se for imposta ao prossumidor de GD fotovoltaica qualquer coisa parecida com a alternativa 5 em nome da modicidade tarifária e para não penalizar os consumidores residenciais que não desejam (ou não podem pagar) a GD fotovoltaica, é fácil ver esta polêmica política energética levando primeiro à deserção de carga e, eventualmente, à deserção da rede.
O mesmo vizinho que não tem um sistema fotovoltaico no telhado descrito na Abradee pelo sofisma do Robin Hood às avessas já mencionado, pode acabar pagando sozinho pelos custos de toda a rede de distribuição, porque seu vizinho prossumidor de GD fotovoltaica abandonou a rede parcialmente ou completamente. Uma vez desencadeada, reverter essa política energética falha e potencialmente catastrófica pode ser uma tarefa difícil.
Embora muitas distribuidoras vejam isso como uma ameaça e estejam lutando contra a energia solar e o armazenamento de energia em baterias em modelos de negócios obsoletos, eles podem ver isso como uma oportunidade de agregar valor à rede e aos seus negócios. Quando GD fotovoltaica e armazenamento são integrados em uma rede, novas oportunidades se abrem e geram valor ainda maior para os clientes e para a rede. Isso inclui benefícios econômicos compartilhados para os clientes e operadores de rede, benefícios com serviços ancilares compartilhados e, talvez mais importante, a capacidade de geração distribuída fotovoltaica e sistemas de armazenamento para compartilhar geração ou armazenamento em excesso.
Em todo o mundo, as redes de distribuição estão no meio de uma transformação, mas essa transformação não precisa acontecer pela escolha dicotômica e exclusiva entre a geração centralizada e a distribuída; ambas podem conviver e atingir um equilíbrio harmonioso, onde a combinação da geração solar centralizada e distribuída, associada ao armazenamento de energia em baterias de lítio (incluindo aquelas que em segunda vida virão da mobilidade elétrica) resultam no maior benefício de todos os usuários da rede elétrica.
*Professor Titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), doutorado em Electrical and Electronic Engineering - The University of Western Australia (UWA-1995) e pós-doutorado em Sistemas Solares Fotovoltaicos realizado no Fraunhofer Institute for Solar Energy Systems na Alemanha (Fraunhofer ISE-1996) e na The University of Western Australia (UWA-2011). Atualmente é coordenador do Laboratório FOTOVOLTAICA/UFSC (Grupo de Pesquisa Estratégica em Energia Solar da Universidade Federal de Santa Catarina, cadastrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq).

Prof. Dr. Ricardo Rüther
Professor Titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com graduação em Engenharia Metalúrgica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS-1988), mestrado em Engenharia de Minas, Metalúrgica e de Materiais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS-1991), doutorado em Electrical and Electronic Engineering - The University of Western Australia (UWA-1995) e pós-doutorado em Sistemas Solares Fotovoltaicos realizado no Fraunhofer Institute for Solar Energy Systems na Alemanha (Fraunhofer ISE-1996) e na The University of Western Australia (UWA-2011). Atualmente é coordenador do Laboratório FOTOVOLTAICA/UFSC (Grupo de Pesquisa Estratégica em Energia Solar da Universidade Federal de Santa Catarina, cadastrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq).
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