Grid-Forming: A Tecnologia que se Tornou a Joia da Coroa no Novo Leilão de Energia do Brasil

O governo brasileiro não está para brincadeira no primeiro leilão de baterias em larga escala. A exigência da tecnologia de ponta "grid-forming" eleva a aposta e encarece projetos, mas é o passaporte do Brasil para a estabilidade

GRID-FORMING: A TECNOLOGIA QUE SE TORNOU A JOIA DA COROA NO NOVO LEILÃO DE ENERGIA DO BRASIL
Solan Group



O setor elétrico brasileiro está prestes a viver uma de suas mais importantes transformações. 

Em abril de 2026, o governo realizará o primeiro Leilão de Reserva de Capacidade (LRCAP) dedicado exclusivamente a sistemas de armazenamento de energia em baterias (BESS), um movimento estratégico para garantir a segurança do sistema diante do avanço das usinas solares e eólicas. Contudo, não se trata de um leilão qualquer. Embutida nas entrelinhas da Portaria nº 878/2025, está uma exigência que se tornou o tópico central de todas as discussões entre investidores, executivos e engenheiros: a obrigatoriedade da tecnologia grid-forming.

Para o leigo, o termo soa como jargão técnico. Para o especialista, é uma revolução. Na prática, o governo está exigindo que as futuras "mega-baterias" do sistema não sejam meros reservatórios passivos de energia, mas sim os maestros ativos da orquestra elétrica. Um inversor com capacidade grid-forming (ou "formador de rede") atua como o cérebro da rede, capaz de criar e sustentar a frequência e a tensão de forma autônoma, ditando o ritmo para os demais geradores. É o equivalente a substituir um músico que apenas segue a partitura por um maestro que garante que toda a orquestra toque em harmonia, mesmo em meio a uma tempestade.

O Fim da Inércia e a Ascensão do Cérebro Eletrônico

A necessidade dessa tecnologia tem uma razão clara: a mudança da matriz energética. Usinas hidrelétricas e termelétricas tradicionais operam com geradores síncronos, imensas massas metálicas giratórias que, por sua própria física, possuem uma inércia natural. Essa inércia funciona como um amortecedor, suavizando pequenas perturbações na rede. Fontes renováveis como a solar e a eólica, por outro lado, não possuem essa inércia mecânica. Elas são conectadas à rede através de inversores que, em sua maioria, são "seguidores de rede" (grid-following), ou seja, dependem de um sinal estável para operar.

"À medida que substituímos geradores síncronos por renováveis, perdemos a inércia do sistema. A rede fica mais 'leve', mais suscetível a instabilidades. O grid-forming é a solução para isso, criando uma inércia sintética e digital", explica um engenheiro especialista do setor que acompanha a elaboração das regras.

O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), ciente desse desafio, não economizou nos requisitos. A nota técnica NT-ONS DPL 0111/2025 estabelece um padrão de performance digno de Fórmula 1 para os equipamentos:

  • Resposta ultrarrápida: Os sistemas deverão ser capazes de corrigir desvios de tensão e frequência em até um ciclo de rede, o equivalente a 16,67 milissegundos. É uma velocidade de reação quase instantânea, crucial para evitar que pequenas falhas se transformem em grandes apagões.
  • Robustez de atleta: As baterias precisarão suportar uma sobrecorrente de 150% por até 5 segundos. Isso significa que, durante um curto-circuito na rede, o sistema não apenas deve se manter de pé, como também deve atuar para estabilizar a situação, um papel que antes cabia a grandes geradores.


O Custo do Bilhete para o Futuro

Toda essa tecnologia, claro, tem um preço. Estima-se que um inversor grid-forming possa custar entre 15% e 30% a mais que um modelo convencional. Para um projeto de 30 MW, o porte mínimo exigido no leilão, isso pode representar um acréscimo de milhões de dólares ao custo de capital (CAPEX).

"A exigência eleva a barreira de entrada, sem dúvida. Apenas os grandes players globais de tecnologia, como a alemã SMA, a suíça ABB e as gigantes chinesas como Sungrow e Huawei, possuem hoje soluções maduras e testadas em campo", afirma um consultor de mercado. "Isso seleciona naturalmente os proponentes e força os desenvolvedores a buscarem parcerias com o que há de mais avançado no mundo."

O governo, por sua vez, aposta que o benefício sistêmico compensa o custo adicional. Ao internalizar a responsabilidade pela estabilidade da rede nos novos projetos de armazenamento, o Brasil evita custos futuros muito maiores com reforços na rede ou com a manutenção de usinas térmicas caras e poluentes apenas para fornecer serviços ancilares.

Um Novo Jogo de Estratégia

O leilão de 2026, portanto, não será vencido apenas por quem apresentar o menor preço. Será um jogo de estratégia, onde a engenharia de ponta e a otimização de custos andarão de mãos dadas. A escolha do parceiro tecnológico para o fornecimento dos inversores grid-forming torna-se tão ou mais importante que a escolha das próprias células de bateria.

Para o Brasil, a aposta é alta. Ao definir um padrão técnico tão elevado, o país se posiciona na vanguarda global da regulação de armazenamento e envia um sinal claro ao mercado: o futuro da energia será renovável, mas também inteligente, resiliente e, acima de tudo, estável. A era das baterias como meras caixas de energia acabou; a era das baterias como o coração pulsante e o cérebro da rede está apenas começando.

O Nordeste no Centro do Tabuleiro

Há outro ingrediente estratégico neste leilão que torna a equação ainda mais interessante: o bônus locacional. O governo criou um mecanismo de incentivo para que os projetos sejam instalados em regiões onde o armazenamento trará maior benefício sistêmico. Na prática, isso significa: o Nordeste.

A região concentra a maior parte da capacidade solar e eólica do país, mas sofre com um problema crescente e caro: o curtailment, ou corte forçado de geração. Dados de mercado apontam que, em 2025, o curtailment de energia solar no Nordeste atingiu níveis alarmantes, chegando a 27% em alguns períodos. Isso significa que mais de um quarto da energia que poderia ser gerada pelos painéis solares está sendo desperdiçada, simplesmente porque as linhas de transmissão não têm capacidade para escoá-la até os grandes centros de consumo no Sudeste e Sul.


"É como ter uma torneira aberta e um cano entupido. A água transborda e se perde. No caso da energia, essa 'água' é dinheiro jogado fora", ilustra um executivo do setor solar que pediu para não ser identificado. "As baterias podem funcionar como um reservatório temporário, armazenando o excesso quando a geração é alta e liberando quando a demanda aumenta ou a geração cai. É uma solução elegante para um problema urgente."


O bônus locacional, que pode chegar a 10% de desconto no preço de lance para projetos em áreas prioritárias, é o cenoura que o governo acena para que os desenvolvedores foquem nessas regiões críticas. Ao instalar baterias no Nordeste, os projetos não apenas competem melhor no leilão, mas também contribuem diretamente para a solução de um dos maiores gargalos do sistema elétrico nacional.

A Conta que Precisa Fechar

Para que tudo isso faça sentido econômico, os desenvolvedores precisam montar um quebra-cabeça complexo. De um lado, há o custo de capital elevado, impulsionado pelos requisitos técnicos rigorosos. Do outro, há a receita fixa garantida pelo contrato de 10 anos, corrigida pela inflação, que elimina o risco de volatilidade dos preços de energia no mercado de curto prazo.

Estimativas de mercado indicam que o custo total de um projeto BESS de 4 horas de duração, com tecnologia grid-forming, pode variar entre US$ 180 e US$ 250 por kWh. Para um projeto de 30 MW / 120 MWh, o porte mínimo do leilão, isso representa um investimento entre US$ 21,6 milhões e US$ 30 milhões. A esse valor, somam-se os custos de operação e manutenção, que incluem não apenas a gestão diária do sistema, mas também a necessidade de adicionar novas células de bateria ao longo dos anos para compensar a degradação natural e manter a capacidade contratada.

"A modelagem financeira precisa ser cirúrgica. Cada centavo conta. A escolha do fornecedor de baterias, a negociação com o EPCista, a estratégia de financiamento... tudo isso define se o projeto será competitivo ou não", afirma um gestor de fundos de infraestrutura que já manifestou interesse em participar do leilão.

O modelo de remuneração, no entanto, é um dos grandes atrativos. Ao garantir uma receita fixa e previsível, desvinculada das oscilações do Preço de Liquidação das Diferenças (PLD), o leilão torna os projetos de armazenamento bancáveis, ou seja, atraentes para financiadores e investidores de longo prazo. É um contrato de renda fixa em um setor historicamente volátil.



O Que Está em Jogo

O LRCAP 2026 não é apenas um leilão. É um experimento regulatório de alto risco e alta recompensa. Se bem-sucedido, ele pode abrir as comportas para uma nova indústria no Brasil, criando empregos, atraindo investimentos e, mais importante, garantindo que o país possa continuar expandindo sua capacidade renovável sem comprometer a segurança do sistema.

Se mal executado, pode resultar em projetos inviáveis, lances irrealistas ou, pior, em sistemas que não entregam a performance prometida, colocando em risco a estabilidade da rede.

Por ora, o mercado aguarda ansiosamente a publicação do Edital final, prevista para aproximadamente 60 dias antes do leilão. Será nesse documento que as últimas dúvidas serão esclarecidas: o volume exato a ser contratado (a expectativa gira em torno de 2 GWh, mas o ministro já falou em 2 GW, o que geraria uma diferença de escala enorme), os pontos exatos que receberão o bônus locacional e os detalhes finais dos contratos.

Uma coisa, porém, já está clara: o Brasil está apostando alto na tecnologia grid-forming como o alicerce do seu futuro energético. E, ao fazer isso, está forçando o mercado global de armazenamento a elevar seu padrão. Não é todo dia que um país em desenvolvimento dita as regras do jogo para gigantes da tecnologia. Mas, quando se trata de energia, o Brasil aprendeu que não pode se dar ao luxo de improvisar.

Este artigo foi elaborado com base em documentos oficiais do Ministério de Minas e Energia, notas técnicas da EPE e do ONS, e entrevistas com especialistas do setor elétrico brasileiro.
Documentos oficiais do Ministério de Minas e Energia, notas técnicas da EPE e do ONS

BOX: Os Números do LRCAP 2026 - Armazenamento

  • Data Prevista do Leilão: Abril de 2026
  • Início de Operação: 1º de agosto de 2028
  • Prazo do Contrato: 10 anos
  • Potência Mínima por Projeto: 30 MW
  • Duração Mínima de Descarga: 4 horas
  • Eficiência Mínima (Round Trip): 85%
  • Bônus Locacional: Até 10% de desconto no lance
  • Modelo de Remuneração: Receita fixa anual, corrigida pelo IPCA
  • Volume Esperado: Entre 500 MW e 2 GW (ainda não confirmado oficialmente)

Este artigo foi elaborado com base em documentos oficiais do Ministério de Minas e Energia, notas técnicas da EPE e do ONS, e entrevistas com especialistas do setor elétrico brasileiro.




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Daniel Pansarella

Executivo com vasta experiência no setor de energia solar, especializado em Tributação, logística, cadeia produtiva de equipamentos e desenvolvimento de negócios para equipamentos solares nos mercados brasileiro e latino-americano. Atualmente, atua como Public Affairs & Business Developer Latam na Trina Solar, uma das principais fabricantes de módulos fotovoltaicos, Trackers e Storage do mundo, e como Presidente do Conselho Fiscal da ABSOLAR (Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica) e Conselheiro de empresas como Brasol (Siemens e Black Rock), Greener e Pacto Energia.

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